A justiça brasileira só falta fazer uma massagem na Vale, BHP e Samarco pela destruição em Minas Gerais

Moradora do distrito de Bento Rodrigues, Mônica dos Santos desenvolveu síndrome do pânico após o rompimento da barragem do Fundão, gerida pela Vale, BHP e Samarco.

1 nov

OITO ANOS SE PASSARAM desde o rompimento da barragem do Fundão, em Mariana. Oito anos de desrespeito e violações de direitos. Na semana passada, mais um tapa na cara: o interrogatório dos réus, no processo movido pela justiça federal, aconteceu num clima de total cordialidade, como se fosse uma conversa entre amigos.

De um lado, os executivos da Samarco, Vale e BHP exaltaram os compromissos com a segurança da barragem de rejeitos, como se fizessem duas vezes mais do que o exigido pelas normas. Para piorar, ainda culparam um abalo sísmico como responsável pela tragédia que matou 20 pessoas – uma teoria que o próprio Ministério Público já havia descartado em 2016.

Do outro lado, promotores e juízes camaradas, cuidadosos com os réus: “responda se quiser, sinta-se à vontade”.

Eu me formei em direito após a tragédia, e não foi isso que aprendi ao longo do curso. Não é essa a postura correta que se espera dos promotores. É preciso questionar. E nenhum deles fez a pergunta básica: por que vocês permitiram que isso acontecesse?

Eles sabiam da trinca na barragem desde 2014, fizeram apenas remendos, adotaram medidas paliativas. Segundo os laudos da própria Samarco, se algo acontecesse a consequência seria um “transbordamento”. 

Eles não disseram até onde esse transbordamento chegaria, quais seriam os danos – e ninguém se preocupou em questioná-los durante o interrogatório. 

Eu vi até onde o transbordamento chegou. Chegou na minha casa, no meu bairro. Mas eu só fui saber disso na manhã do dia 6 de novembro de 2015, depois de uma noite acordada atrás de informações. Até então, eu não tinha noção do tamanho da tragédia – por conta do trabalho, na hora do rompimento eu estava em Mariana e não tinha recebido notícias concretas da situação. Subi num barranco alto perto da estrada de Santa Rita Durão, distrito de Mariana, e consegui ver Bento Rodrigues. 

Aí entendi: eu tinha perdido tudo. Minha casa não existia mais, a igreja não existia mais, a casa da minha avó não existia mais. Era uma cena terrível, eu vi o ônibus que levava as crianças para a escola misturado a telhados. E lama, muita lama. 

“Eu vi até onde o transbordamento chegou. Chegou na minha casa, no meu bairro”.

Quarenta milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério de ferro e sílica desceram de uma só vez, mataram 20 pessoas – os números oficiais não contam o aborto que uma mulher teve durante a tragédia, mas nós contamos também essa morte. A lama varreu o bucólico distrito de Bento Rodrigues. Devastou outros dois, Paracatu e Gesteira, na cidade vizinha de Barra Longa, e poluiu toda a bacia do Rio Doce

Apesar das mortes, a Justiça trancou a ação penal e ninguém responde mais por homicídio qualificado. Em 2016, o Ministério Público Federal havia denunciado 21 pessoas pelo crime

A Samarco, Vale e BHP respondem somente pelos diversos crimes ambientais cometidos no desastre. E, ainda assim, com todo o alívio já concedido aos acusados, os promotores ainda os recebem de braços abertos, sem questioná-los. Faltou só oferecer uma massagem. Para nós, os atingidos, o toque é outro: de injustiça.

Ainda que seja difícil acompanhar as audiências sem poder contrapor os absurdos narrados pelos réus, nós seguimos lá para mostrar que estamos fortes na luta. Incansáveis, ainda que adoecidos. Eu mesma desenvolvi síndrome do pânico após a tragédia. Não fomos apenas até a audiência. 

Nós cruzamos o oceano e desembarcamos na Austrália este ano, onde fica a sede da BHP, para desmontar as mentiras contadas pela Fundação Renova, criada pelas mineradoras com o objetivo de reparar as vítimas. Aos acionistas das empresas, eles contavam maravilhas: limparam todo o rio e prometeram entregar novas casas a todos até o próximo ano!

Mas a reconstrução de Bento Rodrigues passa longe de atender aos pedidos dos moradores. Alguns quartos são tão pequenos que não cabe nada além de uma cama de solteiro. Brigamos pelo nosso fogão a lenha construído com tijolos artesanais. A Fundação havia disponibilizado fogões pré-moldados que não comportam nossos modos de vida. A gente deixava o fogo aceso de manhã e só apagava à noite – e esses pré-moldados não permitem isso. Tudo, na verdade, é uma disputa cansativa. 

Batalhei muito para fazê-los entender que, por conta da síndrome do pânico, não posso viver num canto pequeno e escuro. Até hoje ainda não tive a aprovação completa do projeto da minha futura casa. Ainda assim, sei que não vou ter o quarto enorme de antes, que comportava três camas de solteiro, um armário e uma penteadeira que herdei da minha avó, nem mesmo o meu quintal espaçoso. E, assim como tantas pessoas, ainda não recebi um centavo de indenização.

“Aí entendi: eu tinha perdido tudo. Minha casa não existia mais, a igreja não existia mais, a casa da minha avó não existia mais”.

Foram essas as verdades que levamos à Austrália, numa viagem organizada pelo escritório internacional que nos representa no caso. Em 2016, eles juntaram mais de 200 mil pessoas atingidas pelo desastre e abriram um processo cobrando indenizações justas no país de origem da BHP: a Inglaterra. No ano passado, conseguiram reabrir o processo coletivo, extinto em 2020, cobrando um valor de R$ 230 bilhões em indenizações da empresa. São 720 mil pessoas envolvidas, 2,5 mil empresas, 46 municípios, 10 mil membros quilombolas e indígenas. O julgamento acontece em outubro de 2024.

Passei 15 minutos falando com os acionistas e mostrando a eles a realidade da empresa na qual investem – uma empresa assassina.  Ao final, anunciei ao presidente da BHP, Ken Mackenzie, que tinha um presente do Brasil para ele: uma garrafa com água do Rio doce, cheia de lama. Me proibiram como se eu fosse entregar uma bomba a ele. 

Era só uma amostra da água que temos em nossas casas. Não me deixaram entregar em mãos, mas o recado foi dado. Nós não vamos permitir mais mentiras e desrespeitos em relação às nossas vidas e à nossa realidade. Mesmo se a Justiça seguir conivente com os atos criminosos das mineradoras, como tem feito desde sempre e como o fizeram, mais uma vez, na semana passada, ao longo dos interrogatórios, seguiremos nossa luta.

  • Reportagem/Reprodução: theintercept.com
  • Mônica Santos

Mônica Santos vivia em Bento Rodrigues, distrito de Mariana, quando aconteceu o rompimento da barragem do Fundão. Ela desenvolveu síndrome do pânico após a destruição e se formou em direito para acompanhar de perto o processo contra as empresas Vale, BHP e Samarco.

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